Linha e superfície: um conceito de Vilém Flusser
O jornal impresso diário sob a perspectiva do pensamento-imagem
E m Linha e Superfície, Vilém Flusser (2007, p.103) diz que “as linhas escritas, apesar de serem muito mais frequentes de que antes, vêm se tornando menos importante para as massas do que as superfícies” e, indo além, afirma que o “pensamento-em-superfície vem absorvendo o pensamento-em-linha” no tempo contemporâneo.
Segundo Flusser, as linhas escritas impõem uma estrutura linear, histórica, que, até recentemente, era a principal forma de registro do pensamento (conceitos/conhecimento). Porém, com o surgimento de novas tecnologias (fotografia, cinema, TV) e a consequente imersão delas na sociedade, o pensamento se tornou menos linear e estrutural, obtendo um carácter de mais liberdade no ato da leitura. Essas novas tecnologias, ou as mass medias, são o que o autor chama de superfícies.
“As linhas escritas impõem ao pensamento uma estrutura específica na medida em que representam o mundo por meio dos significados de uma sequência de pontos. […] Paralelamente a esses escritos, sempre existiram superfícies que também representavam o mundo. Essas superfícies impõem uma estrutura muito diferente ao pensamento, ao representarem o mundo por meio de imagens. […] Recentemente surgiram novos canais de articulação de pensamento (como filmes e TV), e o pensamento ocidental está aproveitando cada vez mais esses meios. Eles impõem ao pensamento uma estrutura radicalmente nova, uma vez que representam o mundo por meio de imagens em movimento”
(FLUSSER, 2007, p. 110).
Para o autor, essa mudança na estrutura do pensamento gera algumas crises. Uma delas é a adequação do pensamento-em-superfície à coisa (um fato, um objeto). Como, até o surgimento dessas tecnologias, tradicionalmente, o pensar estava ligado à linha escrita, isso retiraria o crédito das superfícies como uma das possibilidades do registro do pensamento.
Entretanto, para Flusser (2007), ambos modos de pensamento (linha e superfície) são representações ficcionais da realidade baseadas em símbolos. Nesse sentido, as linhas “concebem os fatos que significam, enquanto as superfícies imaginam os fatos que significam. Somente a experiência direta pode nos dar o real conceito da coisa”. Contudo, dentro do tempo contemporâneo, cada vez mais estamos privados da experiência direta e nos relacionamos com o mundo através das imagens (das superfícies). “Como não temos experiência imediata com elas (as coisas), a mídia torna-se para nós a própria coisa. ‘Saber’ é aprender a ler a mídia, nesses casos (p. 112)”.
Outra questão levantada por Flusser (2007) diz a respeito da tendência a classificarmos o pensamento-em-linha como superior ao pensamento-em-superfície, pois, ao contrário desse, aquele é capaz de tornar os fatos objetivos; assim como entendemos a existência de uma cultura de elite e outra cultura voltada para a massa, respectivamente. Entretanto, o que o autor indica é que ambos modos estão perdendo o sentido original.
“Em outras palavras: o mundo da ficção linear, o mundo da elite, está mostrando cada vez mais seu caráter fictício, meramente conceitual; e o mundo da ficção-em-superfície, o mundo das massas, está mascarando cada vez melhor seu caráter fictício. Não podemos mais passar do pensamento conceitual para o fato por falta de adequação, e também não podemos passar do pensamento imagético para o fato por falta de um critério que nos possibilite distinguir entre o fato e imagem. Perdemos o senso de “realidade” nas duas situações, e nos tornamos alienados” (p.116–117).
Flusser acredita que esse seja um processo inevitável que indica um futuro onde o pensamento-linear é incorporado ao pensamento-superfície, tornando o pensamento imagético objetivo, claro e consciente, sem perder a capacidade de ser rico; criando, assim, uma maneira mais efetiva na mediação entre nós e os fatos.
Em suma, o entendimento de Flusser (2007) é que “o pensamento imagético está se tornando capaz de pensar conceitos” (p.117). A união dessas duas mídias (linear e superfície) geraria “um novo tipo de pensamento, com sua própria lógica e seus próprios tipos de símbolos codificados” (p.119–120).
Portanto, para o autor, o mundo contemporâneo seria resultado não mais de um processo linear, mas de um desenvolvimento em espiral, indo da imagem para o conceito e retornando à imagem. Ocasionando uma retroalimentação (feedback), num modelo de pensamento que pode, finalmente, se adequar aos fatos (realidade).
O jornal impresso como imagem-conceito
Se o mundo contemporâneo já chegou à plenitude do pensamento-imagético dito por Flusser, não é uma questão que este texto se propõe a responder. No entanto, de fato, vivemos em uma sociedade onde a imagem, seja estática ou em movimento, ganhou um protagonismo na expressão do pensamento e, consequentemente, do conhecimento; através dos meios de massa tradicionais e, mais recentemente, o boom da internet. Sobre isso, ainda na década de 70, Sontag (2004), no ensaio O mundo-imagem, vai dizer que “uma sociedade se torna ‘moderna’ quando uma de suas atividades principais consiste em produzir e consumir imagens […] (p.169)”.
Assim sendo, mesmo um meio tradicional como o jornal impresso pode lançar mão dos conceitos de Flusser (2007). Se as imagens são cada vez mais capazes de carregarem conceitos, o jornal impresso pode ser encarado como um exemplo de síntese entre o linear e a superfície. Aliás, a página de um jornal, como todo, pode ser compreendida como uma imagem. Santaella (2016), ao falar das linguagens visuais-verbais declara que “em um sentido mais amplo de visual, a funcionalidade da página de um jornal não está muito longe da funcionalidade de uma tela de pintura (p. 384)” — Flusser (2007) também usa o exemplo da tela de pintura ao falar
das superfícies.
O lugar que a informação ocupa na página [do jornal] , o design ou plano da página, a distribuição por tamanho, a escolha dos tipo gráficos, tudo isso é tão significativo a ponto de se poder afirmar que o caráter diagramático do jornal vai além do conceito do diagrama em nível visual ótico para alcançar seu conceito de diagrama de relações inteligíveis (SANTAELLA, 2016, p.384)”
Para a autora, “todo raciocínio é um diagrama de relações inteligíveis” (p. 348, grifo nosso). Ou seja, em certa medida, Santaella (2016) corrobora com a concepção flussiana a respeito do uso da imagem carregada de conceito (pensamento, conhecimento, raciocínio). Por isso, para além da característica semântica do texto noticioso, a composição da página de um jornal impresso envolve escolhas (conceitos) voltadas para o design da notícia e que também obedecem a um ideal (conceito) editorial planejado pelo veículo de comunicação.
Sobre o processo de confecção de um jornal impresso, Benette (2002) diz que a primeira etapa é a escolha da notícia, depois a tradução dessa notícia em linguagem verbal e sua posterior edição para impressão (linguagem visual).
“Isso quer dizer que a matéria-prima (fato/acontecimento) é transformado pelo repórter/redator em notícia (escrita). Por sua vez, essa escrita (notícia) passa a ser matéria-prima do editor, outro profissional na cadeia de produção, que cai construir o seu objeto: a hierarquização da produção de diferentes repórteres/redatores dentro de um princípio lógico de agrupamento do noticiário de acordo com os valores jornalísticos intrínsecos a cada publicação/veículo” (BENETTE, 2002, p.70).
A hierarquização das notícias através dos critérios de noticiabilidade (Benette chama de valores jornalísticos) é um dos primeiros passos na composição da página de um jornal. Tais critérios são usados no meio jornalístico tanto para definir o que será notícia, como para classificá-las em níveis de relevância. Considerando o critério de proximidade, por exemplo, um evento ocorrido na cidade de São José do Rio Preto terá mais importância para um veículo de circulação local, do que para outro que circula somente na capital paulista. Vale ressaltar, novamente, que essas escolhas também envolvem a linha editorial do veículo (o que o veículo pensa? Como se posiciona? Como se pronuncia?). Isso definirá qual notícia terá mais destaque e qual, consequentemente, ficará na parte superior da página, indicando ao leitor qual é a notícia de maior relevância. Pode-se dizer, portanto, que, tais escolhas obedecem a um conceito (jornalístico e editorial) traduzido na composição da página (imagem).
Além dos critérios jornalísticos-editoriais, a disposição dos elementos da página depende da forma como estamos habituados a ler. Devido à escrita ocidental, essa leitura tende a ser da esquerda para direta e de cima para baixo. Nesse sentido, ao olhar uma página de jornal, ocorre uma leitura scanner e em seguida a atração por elementos específicos como fotografias, cores, fios, quadros e tipografias. É o mesmo que ocorre no exemplo dado por Flusser (2007) ao falar sobre a leitura da tela de pintura.
Entretanto, apesar de embasada e útil no design de notícia, é importante ressaltar que tal compreensão de leitura aplicada à página de jornal não é definitiva. Ninguém vê uma imagem de forma robotizada, como se, para compreendê-la, fosse obrigatório começar a leitura a partir de um ponto predeterminado e terminar em outro também preestabelecido. Ocorrendo isso, estaríamos presos na estrutura do pensamento-linear, da linha escrita, como descreve Flusser (2007). Ainda assim, a verdade é que “embora não haja regras definitivas sobre a forma como um indivíduo varre uma página ou uma dupla delas, o uso de ganchos visuais, nas imagens ou nos textos, muitas vezes determinará onde o olho começa a sua jornada (CALDWELL; ZAPATERRA, 2014, p.128)”.
“Compreender a dimensão semiótica do tratamento gráfico é uma forma de alcançar a própria dimensão ideológica, que define não só o que vai ter mais ou menos destaque num jornal como também aquilo que deve despertar o interesse do leitor e fazer que troca (comunicação) não acabe (p. 28). […] Elementos da física, especificamente da ótica, criaram uma estrutura no sentido de facilitar o acesso do olho humano que vê/lê o jornal, numa tentativa de achar harmonia entre o que está escrito e a forma como o texto está apresentado”
(BENETTE, 2002, p.29)
Além da hierarquização e do fluxo de leitura, é o design do jornal que irá indicar os gêneros dos textos jornalísticos presentes nas páginas, facilitando a respectiva identificação visual. Mesmo sem ler o conteúdo, é possível diferenciar uma reportagem de uma coluna de opinião através da tipografia e cores empregadas, entre outros elementos visuais possíveis. Ou seja, o design se emprega de carregar tal conceito — o de gêneros jornalísticos. “O design é, portanto, um dos componentes da enunciação jornalística, […] que antecipa características de gêneros, organização temática, valor-notícia, e influi na construção do jornal como dispositivo de enunciação” (FREIRE, 2009, p.292).
Sobre a tipografia, ainda que utilizada como código da linguagem verbal, também pode ser vista e usada como imagem e contribuir para oferecer um conceito ao leitor. Para Caldwell e Zappaterra (2014, p.179), a tipografia pode trabalhar com outros elementos para “transmitir emoções ou criar vínculos simbólicos”.
“…a combinação de diferentes pesos, entrelinhas, tamanhos e variações pode oferecer interpretações abstratas ou literais expressivas do conteúdo; o uso de uma fonte associada com um clichê específico, como um tipo gótico ou de uma máquina de escrever, pode criar um vínculo simbólico ou cultural que imediatamente transmite algo sobre o conteúdo”
(CALDWELL; ZAPATERRA, 2014, p.179).
Cabe ainda falar da infografia, que é mais um exemplo de síntese verbal-imagética. É na infografia que a comunicação através de ícones e símbolos é usada essencialmente. Kanno (2013) diz que a infografia é o jornalismo visual dentro do jornalismo visual. Nele ocorre o “uso intensivo de diagramas — representação gráfica de fatos, fenômenos ou relações por meio de figuras geométricas” (p.10). Ainda que haja o uso de texto, ele se limita ao formato de tópicos, legendas e trechos bem curtos.
Outro elemento que fala na página de um jornal impresso é a cor. A cor verde, por exemplo, está muito associada ao dinheiro e é comumente utilizada em cadernos de economia e negócios. Os jornais se utilizam dessas conexões entre cor e significado na organização de cadernos, na hierarquização e na navegação. Guimarães (2003) entende que, no jornalismo, as cores oferecem uma função pragmática (organizar, chamar atenção, criar planos de percepção, hierarquizar informações, direcionar a leitura) e outra semântica (ambientar, simbolizar, conotar, denotar), podendo exercer ambas simultaneamente.
O uso do espaço em branco também pode contribuir para transmitir um conceito. Um jornal que queira passar uma imagem (conceito, ideia) minimalista ou de bem-estar, pode oferecer uma mancha de texto e diagramação mais arejada e trazer essa sensação para o ato de leitura. “Se o espaço em branco agrega elegância à atmosfera e narrativa visual (tensão/ausência), então, ele tem valor” (CALDWELL; ZAPATERRA,
2014, p.99).
Por fim, mas considerar o assunto extinguido, os elementos visuais formam, conjuntamente, o estilo de design do veículo, que segue as diretrizes do estilo editorial — o mesmo aplicado na escolha das notícias. Caldwell e Zappaterra (2014) indicam que o estilo editorial tem a ver com a “abordagem da organização em relação ao conteúdo”. Em outras palavras, leva o leitor a compreender quem é aquele veículo, o que ele pensa e como se propõe transmitir. “Esse estilo [editorial] é geralmente definido pelo editor e o designer editorial [de notícias] deve assegurar que ele seja comunicado de forma clara para o leitor por meio do estilo de design” (p.143).
Em síntese, todos os itens até aqui apresentados, entre outros elementos gráficos utilizados na composição de uma página de jornal, trabalham para a transmissão e compreensão da informação jornalística (o fato, a coisa) por parte do leitor e, por conseguinte, carregam conceitos (pensamento, ideia, conhecimento, raciocínio), seja a partir das escolhas jornalísticas-editoriais ou do fim aplicado ao leitor; se aproximando, portanto, da concepção flussiana de pensamento-imagem.
Referências bibliográficas
BENETTE, Djalma L. Benette. Em branco não sai: um olhar semiótico sobre o jornal impresso diário. 1º Ed. São Paulo: Códex, 2002.
CALDWELL, Cath; ZAPPATERRA, Yolanda. Design Editorial. Tradução de Edson Furmankiewicz. 1º Ed. São Paulo: Gustavo Gili, 2014.
FLUSSER, Vilém. Tradução de Raque Abi-Sãmara. Linha e superfície. In: O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
FREIRE, Eduardo Nunes. O design no jornal impresso diário. Do tipográfico ao digital. Revista Galáxia, São Paulo, n. 18, p.291–310, dez. 2009.
GUIMARÃES, Luciano. As cores na mídia: a organização da cor-informação no jornalismo. 1ª Ed. São Paulo: Annablume, 2003.
KANNO, Mário. Infografe. 1ª Ed. São Paulo: Infolide, 2013.
SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual
e verbal: aplicações na hipermídia. 3ª Ed. São Paulo: Iluminuras: FAPESP, 2005.
SONTAG, Susan. Tradução de Rubens Figueiredo. O mundo-imagem. In: Sobre fotografia. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
- Este artigo foi desenvolvido para a disciplina de Projeto Gráfico de Jornal do curso de pós-graduação em Design Editorial do Centro Universitário Senac/SP, lecionada pelo Prof. Me. Marcio Freitas.