O brado de Mahalia Jackson
No famoso discurso de Martin Luther King, foi Mahalia Jackson que gritou “conta para eles sobre o seu sonho, Martin”
Mahalia Jackson tinha apenas seis anos de idade quando sua mãe, Charity Jackson, morreu, em 1917. O pai, John A. Jackson, mal conseguia sustentar a casa composta por treze pessoas, localizada em um bairro pobre de Nova Orleans, cidade de Louisiana, sul dos Estados Unidos.
Após a morte da mãe, Mahalia passou a ser educada pela tia Duke. Abandou os estudos para ajudar em casa, e logo começou a trabalhar.
Tia Duke era uma batista fervorosa e levava Mahalia aos cultos todos os domingos. Foi na Mount Mariah Baptist Church que ela conheceu o gospel,
a música religiosa dos negros, estilo do qual ela se tornaria a maior
intérprete já ouvida.
No final dos anos 20, a família de Mahalia foi para Chicago, cidade que prometia mais postos de trabalhos. Mas a despeito das possibilidades de emprego, Chicago foi central para Mahalia traçar o seu caminho como cantora. Foi nesse período que ela conheceu Bessie Smith, uma das divas do blues, e por quem foi fortemente influenciada.
Em Chicago, a voz de Mahalia se destacou no coro da Salem Baptist Church, tornando-se solista do coral. Não demorou muito para que Mahalia cantasse em outras igrejas e participasse de cruzadas evangelísticas até que, em 1937, gravou seu primeiro disco pela The Decca Coral. Mas o trabalho não obteve o resultado esperado pela gravadora, que acabou cancelando o contrato. Seu jeito vigoroso de cantar não caiu no agrado dos mais tradicionais.
Dez anos depois (1947), ela gravou Move On Up A Little Higher pela gravadora Apollo, um dos seus maiores sucessos com 8 milhões de cópias vendidas e que entraria para o Hall da Fama do Grammy de 1998.
Entretanto, foi em 1950 que ocorreu o grande momento de Mahalia. Ela fez história ao ser a primeira cantora de gospel e spirutuals* a se apresentar no Carnegie Hall, o templo dos grandes nomes do Jazz em Nova York.
Depois do Carnegie Hall, sua voz se fez presente nas rádios e emissoras de televisão e alcançou um público jamais imaginado. Chegou à Europa aclamada como a maior voz gospel de todos os tempos. O reconhecimento do público era tanta que, em 1961, cantou na posse do presidente norte-americano John Kennedy.
Mas todo esse glamour não satisfazia Mahalia. Ela não se considerava uma cantora de jazz ou blues e contrariava amigos mais próximos, como Louis Armstrong e Duke Ellington, quando não aceitava cantar jazz/blues; Mahalia queria mesmo é cantar o “barulho alegre para o Senhor”, como ela gostava de definir seu canto. “São canções de desespero”, declarou ela
sobre o blues.
Por outro lado, Mahalia dizia que “música gospel são canções de esperança. Quando você canta gospel você tem a sensação de que há uma cura para o que está errado, mas quando você está completamente no blues, você não tem nada para descansar.”
Mahalia sabia qual era a sua missão. Procurava sempre viver o que cantava. Aliás, essa era uma de suas maiores preocupações. Mesmo em lugares não religiosos, como o Carnegie Hall, Mahalia impunha limites. Não cantava em nenhum ambiente que contrariava suas canções e, por isso, também rejeitava o rótulo de cantora de jazz ou blues.
“Sempre que Mahalia Jackson derramou o poder e a majestade de sua voz em uma das suas músicas preferidas, “I Believe” (Eu Acredito), nunca poderia haver qualquer dúvida de que ela quis dizer isso, quis dizer cada palavra. Ela acreditava. Ela acreditava em seu Deus e ela acreditou em si mesma. E a sinceridade de sua crença tocou através de cada nota que ela cantou. Por causa de sua crença, ela traçou um caminho muito simples, direto ao longo da vida e ela segurou Nele todo o caminho. Não houve desvios. Ela cantou o Evangelho. Ela cantou a glória de Deus.”
Por JOHN S. WILSON
O sucesso após a apresentação no Carnegie Hall ajudou na situação financeira de Mahalia. Ela comprou uma casa num bairro nobre de Chicago, porém sofreu com o preconceito vigente, pois era um bairro de branco e, portanto, não era bem-vinda ali. Um dia, um tiro atravessou a casa por sua janela, sem atingir ninguém.
Mahalia ainda era vítima da segregação e sua luta a fez conhecer Martin Luther King. Tornou-se a voz dos comícios, marchas e manifestações. Participou de Selma e da marcha de Washington, entre outros.
No famoso discurso de Luther King, foi Mahalia que o impulsionou a falar sobre seu sonho. “Conta para eles sobre o seu sonho, Martin”, gritou ela no meio do discurso do pastor em Washington. Ele, então, emendou “I have a dream…”, desviando-se do discurso programado. “Tenho esperança de que meu canto vai quebrar algo do ódio e do medo que dividi os brancos e negros neste país”, dizia ela.
Dali a adiante, Mahalia se envolveu cada vez mais com a luta dos direitos civis. Criou o Mahalia Jackson Scholarship Foundation, que oferecia bolsas de estudos para jovens negros ingressarem em universidades. Por esse e outros trabalhos, ganhou The Silver Dove Award, em 1961.
“Uma voz como a de Mahalia surge uma vez a cada milênio.”
Por MARTIN LUTHER KING
Ainda nos anos 60, mesmo com a saúde debilitada, cantou na Libéria, Japão e Índia e lançou seu último álbum, Guide Me — O Thou Great Jehovah (1969), até passar a se dedicar totalmente em ações beneficentes.
Mahalia morreu em 1972, aos 60 anos, vítima de um ataque cardíaco. “One of these mornings, I’m going to lay down my cross and get me a crown… and move on up a little higher”, dizia a letra de Move On Up a Little Higher. Algo como: “Em uma destas manhãs, vou entregar a minha cruz e ganhar uma coroa… e ir um pouco mais alto”.
Mahalia Jackson foi um exemplo de artista totalmente compromissada com sua fé e que mostrou ser possível fazer arte além dos muros da religiosidade. Não limitou sua voz apenas aos cultos dominicais, mas deu-a ao mundo em um brado contra a desigualdade. Cantou e encantou. Serviu ao próximo, serviu a Deus.
*O que é spiritual? Música religiosa cantada pelos escravos norte-americanos nos campos de trabalho. As músicas retratavam especificamente a vida de dores da escravidão e a busca pela liberdade. Há quem diga que algumas se tornavam códigos de comunicação entre os escravos.