Miles Ahead: a vida de Miles Davis
“Miles Davis era a voz de um desamparo existencial e de um estado de espírito dividido entre a agressividade e a melancolia”. Não haveria melhor definição para descrever o Miles Davis apresentado por Don Cheadle no filme Miles Ahead
Miles Davis é um dos maiores nomes do Jazz . Isso não se discute. Para alguns, aliás, ao considerar a extensão de seu legado, Miles é o maior de todos os tempos. Afinal, alguém que atravessou gerações sempre inovando, dono de um personalidade única e polêmica, não passaria despercebido pela história do jazz.
Não à toa, em 2006, um sobrinho do trompetista lançou a ideia de um filme, que só seria lançado dez anos depois: Miles Ahead. O ator Don Cheadle foi escolhido como protagonista e, posteriormente, como diretor da produção.
Cheadle passou cerca de dez anos com a família de Davis, estudando para atuar e dirigir Miles Ahead, e se propôs a encenar aspectos polêmicos da vida real de Miles, mesmo não tão belos quanto sua música. “Apesar de ser assustador, pelo tempo que precisei dedicar e às mil funções que tive de desempenhar, sei que precisava fazê-lo”, disse Cheadle.
Cheadle passou cerca de dez anos com a família de Davis, estudando para atuar e dirigir Miles Ahead
Se há algo que me agrada em Miles Ahead é a construção não linear das cenas que nos levam a “viajar” na mente de Miles. O conturbado relacionamento com a dançarina Frances Davis é retomado em flashbacks que parecem o atormentar a todo tempo; sobretudo em um Miles totalmente imerso na cocaína e na solidão durante os cinco anos em que saiu de cena entre 1975 e 1980, período em que o filme se desenvolve.
Os autores Berent e Huesmann dizem, em O Livro do Jazz, que o som de Miles Davis era “a voz de um desamparo existencial e de um estado de espírito dividido entre a agressividade e a melancolia”. Não haveria definição melhor para descrever o Miles apresentado por Don Cheadle: um ser melancólico, inconformado, desacreditado de si mesmo, agressivo e incomunicável.
Miles realmente foi dono de um temperamento difícil. Por muitas vezes tocava de costas para a plateia, era afoito aos fãs que se aproximavam e, se algum jornalista viesse o questionar, respondia: “faço o que me dá prazer” — como quem pouco se importava com o seu público, sobretudo, branco. “Eu não toco para pessoas brancas, cara. Eu quero ouvir um negro dizer: sim, eu gosto de Miles Davis”, dizia ele, ao mesmo passo que não se importava com as críticas por contratar músicos brancos para sua banda.
“Não me importa quem compra meus álbuns, desde que eles cheguem aos negros e, desse modo, eles possam se lembrar de mim quando eu estiver morto” — entrevista a Michael Watt, da Melody Maker
Outro aspecto da vida de Miles explorado no filme é o conturbado casamento com a dançarina Frances Davis. Miles mantinha a fama de infiel de forma pública e chegou a solicitar a Frances que abandonasse sua bem-sucedida carreira de dançarina. Frances atendeu ao pedido de Miles, mas o abandonou pouco depois, com o início das crises e alucinações causadas pelo uso de drogas. Em 2006, Frances Davis falou sobre o assunto ao New York Times.
Os constantes flashbacks entre os momentos de crises de Miles e seu romance com Frances podem nos levar acreditar que Miles tenha chegado àquele estado somente por causa do insucesso conjugal. Entretanto, segundo Berent e Huesmann, há outros dois fatores que o levaram a esse período isolado. Primeiro, por debilitação física: Miles fraturou os dois tornozelos em um acidente de carro em 1972 e posteriormente passou por uma cirurgia coxofemoral, motivada por problemas no quadril. Segundo: a música de Miles passava por um período de estranhos experimentos com percussões africanas e uso de tecnologias como o pedal wah-wah, que não caíram no agrado.
“Não há dúvidas que seu recolhimento não se deu apenas por motivos de saúde, mas também de ordem musical e psicológica: Miles queria ser o ‘maior’. Não só porque ele se habituara a isso, mas também por necessitava disso. Era a meta de seu desenvolvimento musical e humano. Em meados dos anos 1970, a música de Miles se tornou tão sobrecarregada e sem rumo que, decerto, sua autoimagem há tempo já não podia ser tão positiva” — dizem Berent e Huesmann.
Fisicamente debilitado, Miles tocava cada vez menos trompete. A partir de 1972, tudo em sua música denotava recolhimento — Berent e Huesmann
Os flashbacks também nos dão momentos de sucesso de Miles. A similaridade entre as cenas do filme e as fotografias que mostram a parceria do trompetista com o arranjador Gil Evans impressionam.
A relação com Evans deu a Miles uma identidade cada vez mais própria. Tudo era feito para Miles e com Miles. A dupla introduziu o jazz orquestral formando a Miles Davis Capitol Band, também percussora do cool jazz.
“Miles não podia tocar como Louis Armstrong porque o som deste trompetista não se harmonizava com suas ideias. Miles não partiu de nenhum outro som para desenvolver o seu. Ele não podia ancorar suas ideias nas antigas possibilidades de expressão”, diria Evans. Miles também não deixava de expressar essa harmonia: “desde de Charlie Parker, eu nunca ouvi nada que me tocasse tão fundo quanto Evans”.
Miles atravessou gerações e movimentos do jazz sendo protagonista. Nasceu no Bebop, ao lado de Parker, fundou o cool, orquestral, passou pelo hard bop, modal, free, world, fusion, e morreu inovando com Doo Bop, álbum que trouxe o hip-hop jazz.
Há quem diga que Miles Davis morreu vítima do seu próprio destempero. Diagnosticado com uma pneumonia bronquial, foi internado num hospital e lutou contra os médicos que tentavam encubá-lo. Acabou sofrendo um infarto e entrou em coma. Foi foi mantido vivo até 28 de setembro de 1991, quando os instrumentos que sustentavam sua respiração foram desligados.
Birth of the cool
Este texto foi escrito em 2016, época do lançamento do filme Miles Ahead: a vida de Miles Davis. Mais recentemente, em 2019, o documentário Miles Davis: Birth of the cool reuniu cerca de duas horas de profunda análise sobre quem foi Miles. Da genialidade musical à conturbada personalidade, o documentário traz imagens e depoimentos de Frances Davis, Gil Evans, Herbie Hancock, entres outros músicos, empresários, parentes e mulheres que passaram pela vida de Davis. Se o filme de Cheadle já escancara o homem, o documentário de Stanley Nelson é uma imersão no que há de melhor e pior em Davis. O documentário está disponível no Netflix.