Breve linha do tempo da história do Jazz
A história do Jazz e seus estilos: de Nova Orleans à pós-modernidade
O jazz é, predominantemente, resultado da efervescência cultural provocada pelo encontro de povos europeus e africanos em Nova Orleans, cidade do estado de Luisiana, sudeste dos Estados Unidos, por volta de 1890–1900.
Em Nova Orleans era possível ouvir música popular espanhola, inglesa, balé francês, marchas militares, cantos católicos, corais protestantes, e os shouts — como eram chamados os cantos de lamento dos negros, que também traziam seus ritmos e danças (BERENDT, 2014, p. 34).
Evidentemente, o jazz não nasceu de forma isolada em Nova Orleans, porém a cidade é considerada o berço do jazz porque foi lá “que a banda de jazz surgiu como fenômeno de massa”, se espalhando pelo mundo, conforme conta o historiador Hobsbawm (2012, p. 69).
Hobsbawm (2012) explica que um dos motivos para que Nova Orleans fosse o local ideal para nascimento do jazz se deve ao fato de que a cidade era dominada por franceses católicos, que não se importavam com a salvação das almas de seus escravos e toleravam alguns dos ritos religiosos africanos. Para o autor, o jazz é resultado da fusão da música negra com componentes da música europeia de três culturas: a francesa, a espanhola e a anglo-saxã; com especial protagonismo da tradição musical francesa, “por ter sido completamente assimilada pela classe especial de escravos libertos que crescia em Nova Orleans: os gens de couler ou créoles” (p. 62).
Enquanto os créoles se identificavam como franceses — inclusive usando língua e nomes franceses — havia um segundo grupo de afro-americanos que eram descendentes dos escravos libertados após a Guerra Civil e pertencentes a senhores de origem anglo-saxônica. Formou-se, assim, dois grupos de músicos em Nova Orleans: os créoles, que tinham instrução e sabiam ler partitura; e o grupo “norte-americano”, que era mais espontâneo. É justamente da interação entre esses dois grupos que nasce o primeiro estilo do jazz: o estilo Nova Orleans (BERENDT, 2014).
Estilo Nova Orleans
O estilo Nova Orleans era o do jazz tocado nas ruas, geralmente por pequenos grupos formados por clarinete, trombone e trompete, num ritmo próximo à marcha europeia e de circo (ragtime). Os grupos se encontravam e tocavam em uma espécie de competição, envolvidos por um clima típico de carnaval francês e, até mesmo, em funerais, quando os músicos acompanhavam o translado fúnebre com músicas de tom melancólico, mas faziam o caminho de volta festejando (BERENDT, 2014).
Nesse período também surgiram bandas formadas por americanos de origem europeia, que possuíam um modo de tocar tecnicamente mais rigoroso. A principal delas foi a Original Dixeland Jazz Band, por volta de 1910.
Foi com a Dixeland que palavra jazz foi divulgada amplamente. Em 1913, a expressão apareceu em um jornal de São Francisco, mas, antes disso, termos como jas, jasm, e gismo também foram empregados para identificar o novo tipo de música praticado em Nova Orleans. Esses termos eram uma espécie de jargão vindo do mundo dos esportes, que significava destreza e energia. Utilizados como gíria, eles poderiam, ainda, se referir ao ato sexual (BERENDT, 2014).
Estilo Chicago
Desenvolvido o estilo Nova Orleans, a partir de 1920 ocorre uma migração de músicos para Chicago. Berendt (2014) e Hobsbawm (2012) indicam, com ressalvas, que esse fluxo se deu após Nova Orleans se tornar base militar e decretarem o fim da zona de bares e bordéis onde os músicos tocavam.
Do encontro entre músicos amadores e profissionais com o jazz praticado em de Nova Orleans, surgiu o estilo Chicago. Nesse momento cresce a figura do solista, que já aparecia em Nova Orleans, mas com bem menos importância. Também é nessa época que outro instrumento ganha projeção: o saxofone. Segundo Berendt (2014, p. 38), “o primeiro grande estilo de jazz realmente se chama jazz de Nova Orleans, mas sua época de ouro aconteceu na Chicago dos anos 1920”.
Swing Jazz
Dos estilos Nova Orleans e Chicago, nasce o Swing Jazz, que ganha espaço a partir de 1930. A característica marcante desse estilo é a formação de grandes orquestras: as famosas big bands. Com certo refinamento europeu, as big bands desenvolveram os riffs — frases marcantes que são tocadas repetitivamente — e o exploravam no esquema pergunta-e-resposta, muito característico dos cantos africanos.
O solista, nesse período, ganhou ainda mais destaque e, por vezes, era o líder da big band. Apesar de parecer contraditório, é em meio ao processo de surgimento das big bands que o solista cresceu em importância e significado. De acordo com Berendt (2014), isso reflete um ponto marcante do jazz: ser simultaneamente coletivo e individual.
Outra peculiaridade desse período é que o jazz ganhou status de música pop e feita para dançar. É com o Swing que o jazz alcançou todo território americano. Naquela época, era comum as cenas de multidões de fãs em volta do palco para ouvir e dançar jazz (HOBSBAWM, 2012).
“O apelo do swing vinha de uma combinação de ritmos cada vez mais insistentes, e de um ruído considerável. Uma série de muros de sons metálicos, avançando inexoravelmente em direção ao ouvinte, verdadeiros vagalhões arrebentando com força, uma batida de bateria propulsora, ocasionalmente quebrada por uma saraivada de tiros certeiros de virtuosismo. Essa era a sua fórmula básica. O apelo do swing alcançava quase que exclusivamente os adolescentes” (HOBSBAWM, 2012, p. 92).
Um dos episódios marcantes da Swing Era ocorreu em 1938. A banda de Benny Goodman (branco), com músicos de Count Basie e Duke Ellington (negros), se apresentou no Carnegie Hall, até então casa da New York Philharmonic e palco das estreias dos artistas mais importantes da época. Era a primeira vez que uma banda de jazz se apresentava na casa e, o mais notório ainda, foi a primeira banda formada por brancos e negros a tocar no local (BERENDT, 2014).
Bebop
Já nos anos 1940, do Kansas City à Nova York começou a germinar um novo estilo: o chamado Bebop, ou simplesmente bop. O Bebop “era uma revolta dos músicos e não um movimento do público. Na verdade, era uma revolta contra o público, bem como contra a submersão do músico em inundações de barulho comercial. No entanto, era também um manifesto muito mais profundo e mal definido, em favor da igualdade do negro. Os inventores dessa música revolucionária eram, sem exceção, jovens negros, a maioria com vinte e poucos anos, em grande parte ainda desconhecidos” (HOBSBAWM, 2012, p. 117).
Destaca-se, desse período, o trompetista Dizzy Gillespie e o saxofonista Charlie Parker (Bird), maior expoente do estilo. O bebop ficou marcado, sobretudo, pelas frases velozes e pelo improviso uníssono (dois sons de origens diferentes soam como um só) do saxofone e trompete.
Cool
Em 1950 o Bebop começou a dar lugar ao seu antagônico: o Cool. Enquanto o Bebop pode ser descrito por palavras com frenesi, hot, ágil. O Cool é caracterizado por temperança, sobriedade. Nele é comum o uso de notas longas e retas (sem vibrato), quase sussurrantes. Ainda é possível ouvir frases bem elaboradas, mas sem o frenesi do bebop.
Para Hobsbawm (2012), o cool chegou a atingir o limite da fronteira entre jazz e música erudita. São exemplos de músicos representantes desse estilo: Miles Davis e Chet Baker.
É importante dizer que, assim como esses estilos não possuem uma data certa de nascimento, também não possuem uma data de morte. Eles continuam, até hoje, em maior ou menor grau, a conviver e se confundindo com revivals. Ainda no fim dos anos 1950, por exemplo, houve um grupo de músicos com grande conhecimento e perfeição técnica, que retornaram ao bebop atribuindo-lhe uma roupagem mais moderna, conhecido como Hard bop (BERENDT, 2014).
Free Jazz
Adiante, os anos 1960 ficou marcado como o período do Free Jazz. Tal estilo nasce do sentimento de esgotamento de quase tudo o que já havia sido apresentado. Segundo Berendt (2014, p. 46), os músicos mais jovens buscavam novas maneiras de fazer jazz e, em certa medida, rejuvenesceram o espírito da “época em que fora descoberto pelo mundo dos brancos nos anos 1920: uma aventura grande, louca, excitante e incerta”.
Entre vários aspectos do Free, vale citar o retorno da improvisação coletiva; com uma ênfase na intensidade quase que “catártica e orgíaca”, como diz Berendt (2014, p. 46) e uma grande abertura à música de outras culturas: indianas, africanas, asiáticas e árabes; a despeito das formas musicais europeias. Além disso, ocorreu uma adesão ao ruído, sem, necessariamente, sujeitar-se à “estética do feio, do desconforto, da agressão e da violência, mas antes, refletindo o mero prazer pelo som em si mesmo”.
Apesar dessas características gerarem a impressão de que o free jazz é um estilo sem estrutura, quase que anárquico, onde cada um toca o que bem quer; na verdade, há estrutura e vocabulário musical como qualquer outra música. Entretanto, “o free jazz parte da convicção de que tanto esse vocabulário quanto esse sistema de regras, diferentemente das formas de jazz anteriores, não são mais introduzidos de fora, nem aceitos como algo fixo, antes, se desenvolvem a partir da execução e nela encontram seu fundamento. O que move a improvisação livre é a necessidade de negociar essas ‘regras de execução’ a cada vez” (BERENDT, 2014, p. 51).
Jazz pós-moderno
A partir do free jazz, a capacidade natural do jazz de sofrer mutações e de se misturar é potencializada. As novas vertentes soam constantes e em diversas direções: o jazz fusion (jazz com rock, R&B, Soul, Funk); o retorno e adaptações de estilos anteriores (como bebop e swing); o crescimento do jazz europeu e, principalmente, “a formação paulatina de um novo tipo de músico, que transitava entre o jazz e a música do mundo, integrando e transcendendo ambos” (BERENDT, 2014, p. 56). Essa é a principal característica do jazz pós-moderno.
HALL (2006, p. 13) diz que o sujeito da pós-modernidade é composto de várias identidades. A a identidade do homem pós-moderno é “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Em certa medida, o jazz dos anos 1980 reflete esse homem. Segundo Berendt (2014, p. 63), “a eliminação das fronteiras estilísticas foi tão intrínseca ao jazz dos 1980 que falta de um estilo definido quase se tornou um estilo”.
A eliminação das fronteiras estilísticas foi tão intrínseca ao jazz dos 1980 que falta de um estilo definido quase se tornou um estilo — Berendt (2014)
Pode-se dizer que, a partir desse cenário em que se tem a formação do homem pós-moderno, alinhado ao processo de globalização e do desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação, o jazz tornou-se híbrido.
Os músicos de jazz, até então, eram passíveis de serem reconhecidos como sinônimos de certos estilos. É o caso de Charlie Parker e o Bebop, por exemplo. Nos anos 1980 isso era algo improvável, pois “o músico de jazz pós-moderno é, em primeiro lugar, um multiestilista. Para ele, a ideia de um estilo puro é um engodo. […] A mensagem do jazz dos anos 1980 é: anything goes — tudo pode” (BERENDT, 2014, p. 64).
Sobre os anos 1990, Berendt (2014) destaca a continuidade da tendência multiestilista, a inclusão do hip-hop, da música eletrônica e o salto do world jazz, em que migrantes e músicos não ocidentais contribuem para fazer o jazz contemporâneo; sobretudo latinos e asiáticos.
Na atualidade, o jazz e seus múltiplos estilos não podem ser encaixotados em etnias e nações. Em um mundo globalizado e digital, “o futuro do jazz inscreve-se em seu potencial intercultural” (BERENDT, 2014, p. 88). Nesse contexto, Burke (2003, p. 31), ao citar o jazz como exemplo de prática híbrida, explica que as formas híbridas são resultado de encontros múltiplos e sucessivos que, de forma simultânea, adicionam novos elementos à mistura e também reforçam antigos elementos.
Hobsbawm (2012, p. 110), mesmo em um texto originalmente de publicado no final da década de 1950, resume bem a trajetória do jazz: de uma música folclórica urbana, o jazz se desenvolveu, “simultaneamente, em direção à música pop comercial e em direção a um tipo de música especial para músicos, isto é, o embrião da música de arte. Os anos 20 e 30, na evolução do jazz, foram dominados por uma mudança em direção ao comercialismo […]. Os anos 40 e 50 foram igualmente dominados pela reação à música de músicos — a música avant-garde, semi-arte dos músicos que tocavam bop e cool, em grande parte destinada a ser incompreensível pelo não-expert. […] Suspenso em algum ponto entre as origens de música folclórica e a música pop e de arte, em direção às quais ele é, simultaneamente, instado, o jazz permanece difícil de ser classificado.”
Sim. Devido à peculiaridade de ser híbrido, definir o jazz é um difícil desafio. Porém, tendo em vista sua trajetória, é possível pontuar alguns aspectos:
O jazz é encontro. De Nova Orleans à atualidade, o jazz foi e é resultado do encontro, da troca entre diferente culturas. O jazz é citadino, urbano, universal. Foi de Nova Orleans à Chicago, depois Nova York, Paris, Viena, São Paulo, Rio de Janeiro, o mundo. O jazz é contraditório. Consegue ser o novo e o velho; o passado e o contemporâneo. Contradição que é percebida até mesmo em sua estrutura: embora sendo música complexa, possui o espírito fundado na liberdade. E este, talvez, seja o seu maior aspecto. Quer como forma de expressão do negro escravizado, quer como prática híbrida; de sua estrutura mais complexa ao ruído mais trivial: o jazz é, antes de tudo, liberdade.
Este texto foi desenvolvido como parte da fundamentação teórica do Trabalho de Conclusão de Curso da Pós-graduação em Design Editorial do Centro Universitário Senac, em São Paulo-SP — Outubro de 2020.
Referências Bibliográficas
BERENDT, Joachim-Ernst; HUESMANN, Günther. O livro do Jazz: de Nova Orleans ao século XXI. Tradução de Rainer Patriota, Daniel Oliveira Pucarelli. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva: Edições Sesc São Paulo, 2014.
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Tradução: Leila Souza Mendes, 1ª edição. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 7ª edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
HOBSBAWM, Eric J. História Social do Jazz. Tradução: Ângela Noronha. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2012.